Ou bem avançamos com uma reforma fiscal e orçamentária, para valer, ou o País caminhará a passos largos para o vinagre
Opinião - O Estado de S.Paulo
O mais recente episódio da saga para dilapidar as contas públicas ocorreu nesta semana, no Congresso Nacional. Aprovou-se medida para blindar uma parte dos gastos da Defesa Nacional, afastando-se as chamadas regras fiscais.
Em paralelo, há um cardápio de propostas a serem aprovadas, com urgência, sem as quais o governo terá de mudar a meta fiscal de 2026. Não se verifica nem um fiapo do vigor presente na defesa dessa nova contabilidade criativa nos gastos com Defesa quando se trata de apoiar a agenda do ajuste.
Para ter claro, a blindagem dos R$ 33 bilhões de gastos com programas e ações orçamentários na área de Defesa Nacional é um escárnio. Fere a lógica básica do novo arcabouço fiscal (Lei Complementar n.º 200/2023) e comprova que, na hora do vamos ver, ninguém está disposto a cortar gastos.
Serão R$ 3 bilhões, em 2025, e R$ 5 bilhões ao ano, por seis anos, contabilizados por fora das regras de resultado primário (receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida) e do limite de gastos. De que adianta criar regras mirabolantes – e até sofisticadas – se elas não valem para todos?
Pode-se argumentar que seriam valores baixos, sobretudo se nos lembrarmos de que o Orçamento-Geral da União já se aproxima dos R$ 2,5 trilhões (sem considerar o gasto com o refinanciamento da dívida pública e os juros). O problema é que a experiência recente (2009 a 2014) mostra com clareza: a contabilidade criativa começa, justamente, aos poucos. Come-se pelas beiradas e, quando se apercebe, Inês já está enterrada.
A Instituição Fiscal Independente (IFI) mostrou, com propriedade: há R$ 43,3 bilhões em gastos públicos por fora das regras, em 2025, volume que saltará para R$ 72,3 bilhões no ano que vem.
O grosso dessa conta deriva da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que obrigou o pagamento de precatórios caloteados no governo passado, mas permitiu que um naco não sensibilizasse as regras em vigor. Por outro lado, outras medidas menores, à primeira vista, vão aparecendo e se acumulando. Despesas para saldar as dívidas decorrentes das fraudes do INSS, recursos para agir contra o tarifaço de Trump e, a novidade, gastos com Defesa blindados.
A responsabilidade fiscal é um preceito básico para as administrações públicas. Sem ela, não se pode alcançar desenvolvimento e prosperidade. É difícil promovê-la e praticá-la, porque as tentações são múltiplas e vivem atazanando Ulisses, enquanto ele se esfalfa para não deixar desamarrarem seus braços do mastro do navio.
É muito mais fácil para um parlamentar faturar politicamente aumentos de despesas, do que defender o respeito ao dinheiro público e sua aplicação eficiente e eficaz. Esse oportunismo, não custa lembrar, sempre houve. A diferença é que, antes, havia, igualmente, lideranças de peso prontas para levantar a bandeira da responsabilidade fiscal. Hoje, a terra é (quase) arrasada nesse aspecto.
O Congresso deveria compreender que o País caminha para um quadro fiscal preocupante. A dívida pública é 20 pontos porcentuais do Produto Interno Bruto (PIB) maior do que a média observada nos países em mesmo estágio de desenvolvimento. O déficit público, incluídos os gastos com juros, já superou os 8% do PIB no acumulado em 12 meses até setembro, segundo dados do Banco Central.
Não se trata de uma situação de insolvência. Aliás, talvez, por isso, eles sigam operando no fio da navalha. A verdade é que o grau de rigidez orçamentária – cuja contrapartida é a proteção inabalável de programas ineficientes e de ralos pelos quais escoam rios de dinheiro público – combina-se ao drible das regras fiscais para compor um quadro de descontrole. Curiosamente, não se fala sobre o quão antidemocrático é esse conjunto de procedimentos baseados em legislações fracassadas ou ultrapassadas.
Ou bem avançamos com uma reforma fiscal e orçamentária, para valer, ou o País caminhará a passos largos para o vinagre. Já avançamos muito no debate sobre o futuro das contas públicas. É hora de colocar em prática.
Veja-se que as agendas para alçar o País ao grupo dos desenvolvidos, ampliando nossas possibilidades de crescimento econômico e reduzindo desigualdades, ficam em segundo plano.
Como debater o meio ambiente, a transição energética, os investimentos em infraestrutura, a reindustrialização, o futuro do mercado de trabalho, a inteligência artificial e tantos outros temas fundamentais, se não somos capazes de entregar um Orçamento que pare de pé?
Neste momento, por exemplo, o Congresso tem o poder de aprovar medidas fundamentais propostas pelo Executivo ou por sua base: cortes em benefícios tributários (projeto do deputado José Guimarães), mudanças no seguro-defeso (MP n.º 1.323), aumento de tributação sobre as bets e fintechs (projeto do senador Renan Calheiros) e outros.
A disposição para o ajuste fiscal parece ser inversamente proporcional ao discurso oficial de certas lideranças. A oportunidade para demonstrar que este articulista está errado está aí. Vamos à prova dos nove, nestes cerca de 40 dias úteis que o Legislativo ainda terá em 2025.
Felipe Salto - Economista-chefe da Warren Investimentos, membro do Conselho Superior de Economia da Fiesp e professor do IDP, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Felipe Scudeler Salto escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto.
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