Desvirtuamento do papel do BC, autodefesa corporativa no Congresso e paralisia no Executivo desenham quadro de desmanche institucional
José Serra
Opinião - O Estado de S.Paulo
É especialmente tensa a situação que o Brasil atravessa, e não dá para deixar de apontar que este é um momento de grande risco para a democracia. É algo novo para o País que emergiu do fim da ditadura. Não há dúvida de que os anos em que o PSDB governou o Brasil e o primeiro governo Lula, até a emergência do mensalão, mostraram um país ancorado em instituições sólidas. Lógico que crises ocorreram, mas o sentido era de construção democrática dos caminhos do futuro.
De lá para cá, não há como negar que o País perdeu o rumo. As posições foram se tornando cada vez mais antagônicas e deixou de existir uma força política de centro com projeto econômico e social para o País. Em verdade, é difícil dizer que os partidos políticos representem visões sobre o Brasil. É mais honesto caracterizá-los como grupamentos de oportunidade.
O Congresso Nacional é o maior indicador e talvez o grande motor da deterioração institucional. Legislar sobre os interesses nacionais deixou de ser o foco do dia a dia do Congresso. Toda a atenção se volta para salvar um grupo golpista, na forma da anistia. Pior, sua companheira, a PEC da Blindagem, ganhou força, para dificultar as condições do Poder Judiciário de exercer seu papel de monitorar o comportamento dos parlamentares ante o cumprimento das leis a que todos estamos sujeitos.
O show de horrores que o Congresso tem proporcionado ao Brasil e ao mundo parece não ter limites. Um deputado que exerce seu mandato do exterior, orientando outro país para destruir empresas e empregos brasileiros, quase vira líder da Minoria. As Mesas Diretoras são, fisicamente, ocupadas por amotinamentos. Tudo isso misturado com bilhões em emendas parlamentares sem aferição de efetividade do gasto, para não falar de todas as dúvidas sobre sua moralidade.
O fim de semana passado, com muitas manifestações contra o descalabro da direita e dos oportunistas, ao menos trouxe alguma esperança de que os absurdos não ganhem efetivação.
No Executivo, a situação não é menos preocupante. Há tempos que a máquina administrativa tem dificuldades em operar seus instrumentos. O governo Lula ainda procura uma marca eleitoral para 2026. É verdade que Donald Trump e Eduardo Bolsonaro conseguiram entregar a Lula a condição de baluarte da defesa da soberania. No entanto, quando um presidente tem de fazer reunião para cobrar de seus ministros a defesa do governo, há algo de muito errado.
Tudo isso já seria um desastre de grandes proporções, mas ainda tem mais. Como o quadro político enseja uma grande dificuldade de fazer política fiscal, o Banco Central (BC) do Brasil, heroicamente, vai além de seu papel como gestor da política monetária e se arvora em defensor da governabilidade, ou melhor, do que ele entende por governabilidade: juros nas alturas. Com a Selic estacionada num patamar de 15% ao ano, o BC insiste num receituário que pouco dialoga com a realidade da economia.
O discurso técnico é de “prudência monetária”, mas a realidade é que o BC atua de maneira semelhante aos políticos que demoniza, não prestando contas das razões que o levam manter a taxa de juro real em 9,51%, com base no mais recente Focus/BC, quando a inflação está em queda e a economia mostra sinais de reversão. Para preservar sua independência, o BC deveria começar explicando suas decisões.
Desvirtuamento do papel do Banco Central, autodefesa corporativa no Congresso e paralisia no Executivo desenham um quadro de desmanche institucional. Não se trata apenas de ineficiência administrativa ou de escolhas equivocadas de política econômica. O que está em jogo é a própria capacidade do Brasil de sustentar um ambiente democrático, com regras estáveis, instituições respeitadas e horizonte de previsibilidade para cidadãos e empresas.
É claro que os problemas não começaram ontem. Mas o momento atual é marcado por uma combinação explosiva: juros estratosféricos que inviabilizam o crescimento, um Congresso autocentrado e um Executivo hesitante. A convergência desses fatores mina a confiança da sociedade nas instituições e aprofunda a descrença em relação à democracia.
O desmanche institucional não acontece de forma abrupta, mas por erosão contínua. É como se o edifício democrático fosse corroído pouco a pouco: uma decisão monetária desconectada da realidade aqui, um projeto de autoproteção legislativa ali, uma omissão do Executivo acolá. Aos poucos, as bases de confiança e legitimidade se fragilizam, e o País entra num ciclo de paralisia e descrédito.
O Brasil parece avançar perigosamente nessa direção. A manutenção de juros impraticáveis, a relativização de crimes contra a ordem democrática e a incapacidade de governar compõem um mosaico que, se não for revertido, poderá comprometer seriamente o futuro do País. A voz das ruas, no fim de semana passado, pode ter sido aquele momento de ruptura, de recuperar a civilização e negar a barbárie.
Excelente visão e, explicação.
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