Sem regulação firme, o mercado se torna terreno fértil para pressões econômicas que nem sempre coincidem com o interesse público
José Serra
Opinião - O Estado de S.Paulo
Há quase três décadas, quando idealizamos a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o objetivo foi dotar o Brasil de uma instituição técnica, robusta e independente, capaz de proteger a saúde da população com base em evidências e no interesse público. A Anvisa nasceu para ser um órgão de Estado – não de governo –, com a missão de regular medicamentos, vacinas, alimentos, agrotóxicos, dispositivos médicos, fumo, cosméticos e saneantes, além de fiscalizar serviços de saúde. Hoje, suas atribuições alcançam cerca de 23% do PIB nacional. Foi uma decisão estratégica: um país com a dimensão e a complexidade do Brasil não pode depender de estruturas frágeis para cuidar de um bem tão essencial quanto a saúde pública.
O êxito da Anvisa sempre dependeu de duas condições: competência técnica e estrutura adequada. Nos últimos meses, essa segunda condição se viu gravemente comprometida. A agência opera com o menor quadro de servidores desde 2007 e com o colegiado desfalcado. Desde dezembro de 2024, apenas dois diretores exercem o mandato, número insuficiente para dar fluidez às deliberações. Instituições enfraquecidas não protegem direitos; apenas assistem à sua erosão.
Os números falam por si. São quase 32 mil petições aguardando análise, o maior volume desde 2014. No caso dos registros de medicamentos, há 1.924 processos na fila. Só em genéricos e similares, existem 170 pedidos – quase o triplo do observado no fim de 2024. A média de espera para análise de um genérico chegou a 190 dias. Nesse grupo, há fármacos de alto impacto no tratamento do câncer, que pressionam famílias e orçamentos públicos, além de imunossupressores, anticoagulantes, anticonvulsivantes e terapias para diabetes. Regulação lenta é sinônimo de tratamento de saúde negado.
Não se trata de detalhe burocrático. A demora impede que pacientes tenham acesso tempestivo a tratamentos eficazes e reduz a capacidade do SUS de ampliar a cobertura dentro do mesmo orçamento. Em paralelo, a agência segue trabalhando muito: são mais de 250 registros de medicamentos por ano, dezenas de biológicos, mais de 8 mil dispositivos médicos autorizados, cerca de 3.700 pedidos de certificação de boas práticas avaliados, mais de 400 inspeções realizadas e mais de 440 mil processos de importação recebidos. Cabe à agência, ainda, o ordenamento dos preços de medicamentos – instrumento essencial para garantir equilíbrio entre acesso, inovação e sustentabilidade.
Soma-se a isso um debate central: o prazo de vigência das patentes farmacêuticas. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) limitou a extensão automática dessas patentes – decisão idêntica a um projeto que apresentei anos antes, o PLS 437/2018, que fixava o prazo máximo de 20 anos. A proposta teve tramitação lenta e acabou não avançando, e, como tem ocorrido com frequência no Brasil, a omissão do Legislativo abriu espaço para que o Supremo, provocado, ocupasse a pauta e decidisse a questão. Essa não é apenas uma disputa jurídica: ela define a velocidade com que inovações chegam ao mercado. Regulação alinhada às melhores práticas internacionais torna desnecessário que tenhamos de usar a licença compulsória para preservar o acesso aos medicamentos de alto custo.
Países desenvolvidos encurtam prazos e estimulam a concorrência para reduzir preços e acelerar a inovação. No Brasil, a aplicação dessa lógica depende diretamente de uma autoridade reguladora respeitada, com decisões técnicas céleres e previsíveis. Se a saúde é prioridade, a regulação precisa estar na linha de frente. Para isso, é indispensável recompor o colegiado, repor quadros, modernizar processos e assegurar recursos. Regulador fraco significa mercado opaco, preços mais altos e risco sanitário maior.
A missão é inequívoca: restituir à agência condições para cumprir, com excelência, o que a sociedade espera dela – proteger a saúde, garantir segurança sanitária, induzir boas práticas industriais e, ao mesmo tempo, favorecer um ambiente concorrencial que premie a inovação verdadeira e derrube barreiras artificiais. Uma Anvisa robusta traz previsibilidade ao investimento, segurança ao paciente e racionalidade ao gasto público. Sem regulação firme, o mercado se torna terreno fértil para pressões econômicas que nem sempre coincidem com o interesse público, fragilizando a proteção sanitária e comprometendo a saúde da população.
A criação da Anvisa foi, sem dúvida, um dos maiores legados do meu período como ministro da Saúde. Toda vez que recordo daquele momento, renovo a convicção de que o Brasil precisa preservar e fortalecer essa conquista – não por nostalgia, mas pela urgência de garantir o acesso a produtos seguros e eficazes. A política de medicamentos genéricos, que também ajudei a implantar, depende diretamente dessa estrutura. Nenhuma instituição, por mais sólida que seja, resiste à inanição prolongada. Esta é a hora de devolver à agência a sua plena capacidade de agir.
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