Artigo de Andrea Matarazzo em defesa da Lei Cidade Limpa

Flexibilização não atende a demandas reais da população ou do urbanismo, mas a setores que enxergam São Paulo como espaço de exposição comercial

Andrea Matarazzo

Andrea Matarazzo - Diplomata, foi ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência (1999-2001), secretário estadual de Cultura (2010-12), secretário de Serviços e Subprefeituras de São Paulo na gestão Serra/Kassab e presidente da Cesp

TENDÊNCIAS / DEBATES - FOLHA DE S.PAULO 

Desde sua sanção, em 2006, a Lei Cidade Limpa transformou a paisagem da cidade de São Paulo e tornou-se um marco de civilidade urbana. Inspirou legislações em outras cidades do Brasil e do mundo, foi premiada internacionalmente e continua sendo, quase duas décadas depois, referência de política pública bem-sucedida.

Fui secretário das Subprefeituras no momento da implementação da lei. Vi de perto o impacto imediato que ela teve: os prédios começaram a respirar, as ruas pareciam mais largas, a cidade ficou mais leve.

Não foi fácil —houve resistência de setores que lucravam com o caos visual—, mas a população entendeu e apoiou a medida. É esse compromisso com o bem coletivo que agora precisa ser reafirmado.

Mas esse pacto coletivo está hoje sob risco. Um projeto de lei aprovado em primeiro turno na Câmara Municipal pretende flexibilizar pontos centrais da legislação, abrindo caminho para a volta da poluição visual e para a desfiguração de espaços protegidos —inclusive bens tombados e edifícios de valor histórico. A proposta, sob o disfarce de "modernização" e criação da "Times Square" tupiniquim (modernidade e Times Square, vejam o paradoxo), autoriza, por exemplo, a instalação de painéis de LED em áreas amplas da cidade e permite que anúncios ocupem até 70% da fachada de imóveis de valor cultural. É um retrocesso.

Os ex-prefeitos José Serra e Gilberto Kassab criticam duramente qualquer tentativa de alteração do regramento. Kassab chegou a classificar a proposta como um "golpe contra São Paulo". Foi na sua gestão que implementamos a legislação, idealizada na gestão de Serra, quando Kassab era seu vice, enfrentando fortes pressões contrárias.

Hoje é quase inimaginável a São Paulo dos anos 1990 e início dos 2000, sufocada por outdoors, faixas e letreiros desordenados que poluíam visualmente cada esquina e favoreciam práticas irregulares de uso do espaço público. É justamente isto que torna o debate urgente: uma nova geração pode não ter vivenciado o caos anterior, mas terá de viver com suas consequências caso esse projeto avance.

O apoio à lei continua massivo. Pesquisas refletem isso. Os três maiores jornais do país —Folha, O Estado de S. Paulo e O Globo— publicaram editoriais em defesa da norma. Entidades como o Instituto de Arquitetos do Brasil também se manifestaram com veemência contra a proposta de mudança.

Não se trata de negar a evolução tecnológica nem o debate sobre revitalização urbana. É legítimo discutir melhorias na lei, mas é inaceitável usar esse debate como cavalo de Troia para reinstaurar a lógica do interesse individual sobre o coletivo, transformando a cidade num pastiche publicitário que apaga sua história e compromete sua identidade.

A paisagem urbana é também expressão da memória coletiva, da história e da identidade de uma cidade. Cada fachada preservada, cada prédio visível sem a interferência de anúncios agressivos, comunica algo sobre quem somos e o que valorizamos como sociedade. Poluição visual não é apenas desordem estética —é ruído simbólico, uma forma de apagar a cidade e submeter o olhar público à lógica de mercado.

A tentativa de flexibilização não atende a demandas reais da população ou do urbanismo. É impulsionada por setores que enxergam a cidade como espaço de exposição comercial e ignoram os avanços já consolidados. A paisagem urbana pertence a todos —e a Lei Cidade Limpa continua sendo um instrumento essencial para protegê-la.

A defesa da Cidade Limpa também aponta para o futuro. São Paulo pode —e deve— liderar um novo modelo de urbanismo democrático, onde o espaço público seja preservado como bem comum e os códigos de convivência reflitam valores coletivos. O respeito à paisagem urbana é parte essencial desse projeto de cidade.

Preservá-la é preservar São Paulo.

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