"Compaixão ou omissão", artigo de Ronaldo Laranjeira


Folha de S.Paulo

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Um dos princípios preconizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é que cada cidadão deve receber cuidados de acordo com a sua necessidade. Pense em um paciente com uma doença crônica, como diabetes. Essa pessoa precisa de uma série de cuidados para o gerenciamento de sua enfermidade, como a utilização de insulina em certos casos ou controle de alimentação.

E se sua saúde piorar? Pode ser que ela tenha que ser inserida em outro nível assistencial: um hospital ou até uma UTI.

Nessa lógica encontra-se a dependência química, outra doença crônica em que, em determinadas ocasiões, apenas o tratamento ambulatorial não é suficiente para a melhora do paciente, sendo necessária a internação em locais especializados de tratamento, visando ampliar o acesso a uma linha de cuidados mais abrangente.

No entanto, a dependência química é uma doença com diversas particularidades. Nos casos mais graves, geralmente o usuário de drogas encontra-se vulnerável socialmente e em más condições de saúde.

Além disso, a desorganização mental em dependentes químicos com altos índices de consumo de drogas é imensa, fazendo com que suas funções cognitivas não estejam íntegras. Isso impacta a memória, atenção, capacidade de pensar e executar tarefas normalmente. Seu julgamento e poder de decisão são fortemente comprometidos.

É dever do médico buscar o melhor para o paciente, provendo assistência em saúde de qualidade.

Não utilizar todos os recursos de que o usuário necessita em sua assistência é, literalmente, uma omissão de socorro.

Por isso, sou defensor do cumprimento da lei nº 10.216, de 2001, que prevê que o médico pode decidir pela internação involuntária ou o juiz pode determinar uma internação compulsória de pacientes -em todo caso, apenas em casos extremos.

Para tal medida ocorrer, o dependente químico deve ser avaliado por uma equipe médica, que definirá o tratamento adequado.

Caso ele não queira a internação, mas seja constatado que não possui domínio sobre sua condição psicológica e física no momento, inclusive com risco à própria vida, um juiz pode determinar a internação nessas condições.

A família também pode solicitar a internação involuntária do usuário ao sistema de saúde, mediante concordância médica, ou pedir a compulsória à Justiça.

É importante frisar que a internação compulsória de dependentes químicos deve ser considerada o último recurso de reabilitação, dentre tantos outros disponíveis no tratamento oferecido aos usuários de drogas, inclusive pelo SUS.

Em São Paulo, o programa Recomeço estruturou uma linha de cuidados que prevê o atendimento mais simples, como o ambulatorial, e até internações e procedimentos terapêuticos de alta complexidade.

O programa conta com mais de 3.000 leitos em clínicas e comunidades terapêuticas no Estado -uma rede destinada para tratamento, desintoxicação e apoio social a usuários de drogas.

De 2013 a 2016, o Recomeço já fez 53.214 triagens e acolhimentos e viabilizou a desintoxicação hospitalar de 11.507 pacientes -8.904 voluntários, 2.580 involuntários e 23 compulsórios.

Assim, quando o dependente químico tem acesso à assistência com começo, meio e fim, composta de uma linha de atendimento com recursos ambulatoriais, de internação e reinserção social, a chance de sucesso no tratamento é infinitamente maior, raramente necessitando de internações forçadas.

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*RONALDO LARANJEIRA, psiquiatra, é coordenador do Recomeço, programa do Estado de São Paulo de enfrentamento ao crack e outras drogas

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