Haddad usa prédios particulares para inflar meta de moradia popular


Sem alcançar meta de entregar 55 mil moradias em sua gestão, prefeito passou a contar 3,6 mil unidades feitas pela iniciativa privada

ADRIANA FERRAZ E LUCIANA AMARAL - O ESTADO DE S. PAULO


Longe de alcançar a meta de entregar 55 mil moradias até o fim de 2016, o prefeito Fernando Haddad (PT) passou a contabilizar imóveis particulares como habitações da Prefeitura. Dessa forma, 3,6 mil unidades construídas pela iniciativa privada entraram para a lista municipal. O número representa 42% dos 8,5 mil apartamentos que a Secretaria Municipal da Habitação diz ter entregue desde 2013. 

São unidades de característica popular, que só tiveram o “licenciamento agilizado”, segundo a própria Secretaria da Habitação, mas que em nada se assemelham aos projetos desenvolvidos pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab). Apesar disso, estão todas incluídas no Plano de Metas de Haddad, que apresenta compromissos da gestão, mas não os torna obrigações legais. Para o Ministério Público, porém, o governo só pode incluir obras privadas em seus apontamentos oficiais quando há aporte de “verba pública”.

Boa parte dos condomínios usados para inflar os dados da habitação tem piscina, academia, salão de festas, sistema de segurança por imagem e churrasqueira. Com tantos extras, o valor da taxa de condomínio também foge do padrão municipal, de R$ 80. Os donos desses imóveis pagam R$ 250, em média. É o que desembolsa todo mês a atendente de telemarketing Célia Onix, de 39 anos, proprietária de um apartamento no Parque das Flores, em Guaianases, zona leste, feito em parceria com o programa federal Minha Casa Minha Vida. 

“Usei meu fundo de garantia para dar a entrada e financiei o restante com a Caixa Econômica Federal, que dá subsídio para baixa renda”, explica ela. “A Prefeitura não participou da negociação em nenhum momento.” Segundo Célia, a compra se deu do modo tradicional: ficou sabendo da obra por uma amiga, visitou o estande de vendas e esperou a aprovação do crédito. “Fiz tudo sozinha. Bem que eu queria, mas a Prefeitura não me deu benefício”, afirma. 

No site Habisp.plus, página que concentra dados sobre as metas habitacionais do governo, a família de Célia consta como uma das cem atendidas com o empreendimento. Ao todo, são 21 condomínios “emprestados” pela gestão Haddad até agora. Eles constam da lista de obras concluídas pela Prefeitura e estão divulgados juntamente com os prédios da Cohab para atendimento de famílias que moram em favelas ou áreas de risco. A Caixa confirmou que os recursos para o financiamento dos 3,6 mil imóveis privados que constam na lista municipal são do FGTS, sem verba da União ou da Prefeitura. O Ministério das Cidades também afirmou desconhecer participação da Prefeitura.


Fila. São Paulo tem mais de 165 mil pessoas na fila da moradia. Cerca de 75% delas se encaixam na faixa de renda 1, a mais baixa, de zero a três salários mínimos. Para esse público, especificamente para rendas familiares de até R$ 1,6 mil, o programa Minha Casa Minha Vida oferece subsídio de R$ 25 mil para a compra de imóvel, que poderá ser financiado em até 120 meses pela Caixa.

Quando assumiu o cargo, em janeiro de 2013, o prefeito Haddad prometeu atender prioritariamente famílias pertencentes à faixa 1, oriundas de áreas de risco e favelas removidas – além dos cadastrados na fila da Cohab, onde há pessoas que aguardam por uma moradia há mais de 30 anos. Mas, diferentemente da promessa, os 3,6 mil moradores contabilizados em prédios privados não saíram da fila municipal. A maior parte nem sequer se enquadra na faixa 1.

“Apesar de ser imóvel para baixa renda, as parcelas cobradas apertam o orçamento. Pago mais de R$ 1 mil por mês, fora o condomínio, que custa quase R$ 300. Uma família pobre não pode arcar com isso. Aliás, não sei por que meu prédio está na conta da Prefeitura. Aqui não é uma Cohab”, diz a dona de casa Luana de Lima, de 33 anos. 

Há duas semanas, ela, o marido e a filha de 2 anos se mudaram para o Be Life Residencial Fortaleza, em Campo Limpo, na zona sul. O empreendimento está na lista das habitações produzidas e entregues pela Prefeitura. Na última quinta-feira, o Estado visitou o condomínio. Os corretores de plantão mostraram duas unidades ainda disponíveis para venda, aberta a qualquer pessoa disposta a pagar R$ 225 mil.

Unidades em produção pelo mercado também figuram na lista de obras do Município. De acordo com o Habisp.plus, 5.208 apartamentos, ou 26% dos 19.540 em construção, são projetos particulares. Na lista está um megaempreendimento na Avenida do Estado, altura da Vila Prudente, na zona leste. Em ritmo avançado, serão 1.120 unidades com metragem variada, de 35 a 65 m². No Tatuapé, outras duas torres em construção pela iniciativa privada estão classificadas como obras municipais. Juntas, somarão 142 unidades de dois dormitórios, com 44 m² ou 68 m². O preço para a venda é de R$ 395 mil.

HIS e verba. A gestão Haddad afirma que sua meta é produzir 55 mil moradias no modelo de Habitação de Interesse Social (HIS), direcionado a famílias com renda de até seis salários. Dessa forma, mesmo ao acelerar licenciamentos de empreendimentos particulares para essa faixa, a Prefeitura afirma atender a parte do déficit habitacional da cidade, apesar de não serem obras públicas. 

O orçamento da Habitação previa R$ 780 milhões neste ano. De acordo com a pasta, foram liberados R$ 590 milhões e investidos R$ 300 milhões em desapropriações. “Os valores têm diversas funções para a habitação popular: construção de unidades, auxílio-aluguel, programas de urbanização de favelas e mananciais, desapropriações e aquisição de terras”, informa a pasta, em nota. 

Promotoria contesta dados e vai investigar

O promotor de Justiça Marcus Vinicius Monteiro dos Santos afirma que o prefeito Fernando Haddad (PT) não pode contabilizar unidades totalmente particulares como imóveis entregues pelo poder público e promete investigar o método empregado. É o caso, por exemplo, do empreendimento You, Marajoara, que fica na zona sul. De acordo com o Habisp.plus, as 119 unidades do condomínio foram produzidas pelo Município, informação negada até pela construtora. Em nota, a empresa afirma que o projeto não teve participação municipal. 

“Para que a Prefeitura considere um imóvel comercializado pelo mercado como seu é preciso que haja aporte de recursos municipais”, afirma Santos, da Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital. “E esses dados revelam outro problema: a construção de número grande de empreendimentos que não atendem quem mais precisa, que é a população da faixa 1.”

O promotor afirma que a prioridade deveria ser atender a camada menos favorecida. “É a que inclui as famílias que estão invadindo toda semana imóveis na periferia, que estão sendo despejadas por causa de liminares judiciais e estão no cadastro da Prefeitura há mais de 30 anos.”

Segundo dados fornecidos pela Prefeitura à Promotoria de Habitação, de janeiro a junho 6 mil famílias foram despejadas de imóveis ocupados. A expectativa é que esse número alcance dez mil no ano. O problema é tratado em um dos quatro inquéritos abertos pelo promotor para investigar o déficit habitacional. Santos ressalta que todo prefeito deve ter metas ambiciosas, mas deve reconhecer quando não pode cumpri-las. “É essa expectativa que leva a ocupações.”

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