'Disputar é uma coisa, governar é outra', artigo de Pero Malan


O Brasil precisa de um candidato reformista de centro, honesto, experiente, sem ilusões

O Estado de S.Paulo


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Neste momento especialmente angustiante da História do País, recorro a Ítalo Calvino para comentar a transição do governo atual para aquele que resultará das urnas de outubro: “A memória conta realmente – para os indivíduos, as coletividades, as civilizações – só se mantiver junto a marca do passado e o projeto do futuro; se permitir fazer sem esquecer aquilo que se pretendia fazer; tornar-se sem deixar de ser; ser sem deixar de tornar-se”. 

Essa reflexão se presta a ilustrar os desafios que temos para os próximos anos. O chiste de Ivan Lessa é conhecido: “A cada 15 anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos”. Em 2018 o Brasil vai decidir se esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos, desde 2003. Ou se espera até 2033 para esquecer o que terá acontecido desde 2018. Ou ainda se esquece Lessa e decide que não há razão para tão longo período de esquecimento.

Também não há razão para esperar 2019 e só então começar a avaliar o que se proporão a fazer o presidente e o Congresso a serem eleitos em outubro próximo. Os partidos que se julguem competitivos deverão fazer uma inevitável escolha sobre o teor do seu discurso de campanha – e quanto mais cedo, melhor.

No caso do PT, a disjuntiva foi identificada com clareza por Demétrio Magnoli (O PT diante da esfinge, Folha de S.Paulo, 27/1), ao se referir ao enigma existencial (“ordem” ou “ruptura”) que marcou a história do partido e que encontrou até agora apenas em Lula o instável equilíbrio do edifício partidário. O autor escreve: “O manual do marketing eleitoral reza que o nome de Lula deve permanecer numa cédula fictícia, aureolado pela denúncia da ‘farsa judicial’, até o momento derradeiro da substituição inevitável. Mas como fazer a transição do discurso da ruptura ao da ordem (...) sem fragmentar o campo da esquerda?”.

O PT tem quadros e simpatizantes mais moderados que poderiam limitar a nefasta polarização para a qual estamos caminhando, com uma candidatura de extrema direita já posta, e aparentemente bem situada. O Brasil só tem a perder com a confrontação de extremos que se vem desenhando. Ela significa que corremos o enorme risco de não discutir os reais desafios que temos à frente, perdendo tempo, em vez disso, com bravatas, acusações retóricas, promessas que não podem ser cumpridas e demagogias baratas. É legítimo que o PT pretenda fazer uma grande bancada no Congresso e alcançar o segundo turno das eleições de outubro com um nome que, substituindo Lula, se beneficie de transferência de votos, como a que deu vitória a Dilma Rousseff em 2010 e 2014. Para tanto seria importante começar desde logo a refletir sobre sua própria experiência na transição de 2002/2003 – aquela de FHC 2 para Lula 1.

A História nunca se repete, mas encerra frequentemente lições importantes. O PT havia aprovado em congresso nacional, em dezembro de 2001, o programa de governo intitulado A Ruptura Necessária. Antes, em setembro de 2000, havia promovido um plebiscito pela suspensão de pagamentos das dívidas externa e interna. Por fim, havia se declarado contrário à Lei de Responsabilidade Fiscal e se dedicado a derrotá-la na Justiça, onde a reputou “incompatível com a responsabilidade social”. Eram importantes pilares da herança que o partido construiu para si e com a qual chegou às eleições de 2002. A qual, como resultado de competente trabalho de marketing político, precisou ser desconstruída a tempo de permitir que partido e candidato fossem vistos como capazes de governar, se eleitos. Perceba-se: não apenas capazes de ganhar as eleições, mas também de efetivamente governar um país da complexidade do Brasil – o que são coisas distintas.

Essa impressionante mudança de discurso, que fez bem ao País, permite chamar a atenção de partidos e candidatos que se acreditem competitivos, e seus respectivos economistas, para uma coincidência relevante. Ocupam hoje os cargos-chave de presidente do Banco Central e secretário executivo do Ministério da Fazenda, respectivamente, Ilan Goldfajn e Eduardo Guardia, este dado como próximo titular daquela pasta ministerial. O primeiro era diretor do Banco Central em 2002; o segundo, secretário do Tesouro no Ministério da Fazenda no mesmo momento. Ambos têm memórias vívidas, porque vividas, e não apreendidas em leituras ou do relato de terceiros, daqueles meses cruciais que se estenderam de abril de 2002 a 1.º de janeiro de 2003, quando as excelentes equipes de Antônio Palocci (Fazenda) e Henrique Meirelles (Banco Central) assumiram a responsabilidade pela condução da política econômica.

A exemplar transição nessa área poderia inspirar outras, ao menos da parte daqueles que estejam empenhados não apenas em ganhar as eleições de outubro, mas também em governar bem – com que prioridades, com quem e para quem. As duas coisas são, ou deveriam ser, indissociáveis.

Essas observações – e a reflexão de Calvino – valem, naturalmente, para candidatos, e suas equipes, de todo o espectro político. O Brasil precisa, a meu ver, de um candidato reformista de centro, honesto, experiente, que não tenha ilusões – ao contrário, que conheça bem a real situação das contas públicas do País (governo federal, Estados e muitos municípios), o drama da educação, a tragédia da corrupção e da violência urbana. E que tenha refletido e se cercado de pessoas experientes, tecnicamente competentes, que conheçam a máquina pública e seus corporativismos; e que sejam capazes de vislumbrar o País no mundo, e não fechado em seu labirinto.

É querer demais? Talvez, mas o Brasil está a exigir nada menos do que isso: gente que saiba para que deseja ser eleita, o que pensa em fazer e com quem pretende formar efetivas equipes de trabalho comprometidas com um Estado a serviço dos brasileiros; e que seja por estes percebido como tal.


*PEDRO S. MALAN, ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM

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