"A Indispensável Reforma Política", Artigo de Franco Motoro, escrito há 20 anos


Apesar deste artigo do saudoso André Franco Motoro ter cerca de 20 anos, ainda é atualíssimo e serve de base para o debate vigente sobre as reformas. 

Eu e Franco Motoro em 1998

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A Indispensável Reforma Política


No momento em que o Congresso Nacional se concentra na discussão e votação das reformas administrativa, previdênciária e outras, é oportuno lembrar a importância fundamental da reforma política, que constitui hoje o maior desafio aos responsáveis pelo aperfeiçoamento da democracia brasileira.

A reforma política, por sua importância básica deveria ser a primeira das reformas, porque é na área do governo que se decidem os destinos do país e as condições de vida da população. Essa verdade está clarificada na conhecida observação de BRECHT:

"O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio, depende de decisões políticas".

Nosso sistema de decisões políticas apresenta alguns defeitos fundamentais, que vêm de longa tradição autoritária, centralizadora e elitista. São eles:

- a centralização unipessoal do poder;

- o sistema eleitoral defeituoso;

- a má organização partidária;


além de outras questões como a da desproporcionalidade da representação política dos Estado no Legislativo.


PODER UNIPESSOAL

Em primeiro lugar, está o tradicional poder centralizador e unipessoal do Chefe do Executivo, já denunciado nas palavras candentes de Rui Barbosa.

"O Presidente da República encarna o poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder do bolso, o poder dos negócios, o poder de força".

O mesmo problema é denunciado no programa do meu partido, o PSDB, ao condenar o presidencialismo vigente no país, com as seguintes palavras:


"... (nosso) presidencialismo tende a ser o regime do poder unipessoal e das decisões a portas fechadas, num convite permanente ao fisiologismo político".

Esse poder unipessoal deu origem à expressão consagrada pela imprensa e pelos observadores políticos: "o poder da caneta", que está na raiz de quase todas as deformações e injustiças da nossa vida pública, na esfera federal, estadual e municipal. Entre outras, duas conhecidas obras de nossa literatura política, ilustram essa situação: "Os donos do poder", de RAYMUNDO FAORO e "Coronelismo, enxada e voto", de VICTOR NUNES LEAL*

O poder concentrado facilita o clientelismo, a corrupção e o desvio de recursos públicos.

Além disso, quando um só homem detém em suas mãos o poder de nomear, contratar e comandar verbas, surgem naturalmente grandes ambições políticas e financeiras. A conquista do poder passa a ser um bom negócio e bom investimento. O que, talvez, explique a presença insistente de grandes fortunas na disputa do Executivo em nossa vida pública.

E no plano institucional, quais têm sido os frutos do Presidencialismo autoritário em nossa história política?

Não podemos esquecer que, por sua rigidez e abuso de poder que possibilita, ele tem provocado como reação, em nossa história, freqüentes golpes, contragolpes, revoluções e instabilidade institucional.

Sem contar os acidentes anteriores, tivemos, a partir dos anos 20 uma seqüência impressionante de crises e interrupções da normalidade constitucional. Eis os fatos: Levante tenentista de 1922. Revolução de 1924. Coluna Prestes em 1926. Revolução de 1930. Revolução Constitucionalista de 1932. Golpe de Estado em 1937. Ditadura de Getúlio Vargas até 1945. Suicídio de Vargas em 1954. Renúncia de Jânio Quadros em 1961. Deposição de João Goulart em 1964. Regime Militar de 1964 a 1985. Impeachment de Collor em 1992. Durante esse período, apenas um presidente civil eleito diretamente pelo povo, completou, normalmente seu mandato: Juscelino Kubitschek.


PENSAR NO DIA DE AMANHÃ

Esse quadro nos impõe uma reflexão. Vivemos hoje um período de tranquilidade institucional e relativa estabilidade econômica com a presença na Presidência da República de um homem das qualidades pessoais de Fernando Henrique Cardoso, que não tem usado os extraordinários poderes que o atual sistema de poder lhe confere para interesses menores.

Mas esse é o quadro de hoje. O bom senso e o interesse público nos obrigam a pensar no dia de amanhã, nos próximos anos, nos futuros presidentes. A segurança do país e a sorte da população não podem depender das eventuais qualidades do governante.

É necessário lembrar, ainda, que para a intranqüilidade do povo brasileiro, estão à vista algumas ambições bilionárias, em busca do "poder de caneta".


MEDIDAS PROVISÓRIAS

A tradicional concentração de poderes do Executivo foi agravada a partir da Constituição de 1988, pela figura das Medidas Provisórias (art.62), que podem ser adotadas "com força de lei pelo Presidente da República em caso de relevância e urgência". Nos termos da norma constitucional: elas "devem ser imediatamente submetidas ao Congresso Nacional e perderão eficácia, se não forem convertidas em lei no prazo de 30 dias". Mas podem ser sempre reeditadas.

Os dados sobre a matéria são alarmantes. À revelia do Congresso Nacional – que é constitucionalmente o órgão competente para legislar sobre todas as matérias de competência da União – vêm sendo editadas e reeditadas milhares de Medidas Provisórias sobre todos os assuntos. Até esta data, foram exatamente 2.795. A primeira MP, de número 001, no governo SARNEY, saiu no dia em que a Constituição foi promulgada. Também foi a primeira a ser reeditada. No governo ITAMAR, foram editadas ou reeditas 505 MP. COLLOR é recordista de MP num único dia. Em 15 de março de 1990, data da posse, baixou 22, para sustentar o Plano Collor. Entre elas, a que congelava a poupança dos brasileiros. No governo atual foram editadas ou reeditadas 1.800. O próprio Presidente da Câmara dos Deputados, MICHEL TEMER, ao assumir por 3 dias a Presidência da República, precisou reeditar 15 Medidas Provisórias.


CAMINHO A SEGUIR

A consideração objetiva e responsável desses fatos nos obriga a procurar novos caminhos. É preciso substituir esse sistema de poder unipessoal e autoritário por um sistema mais democrático e participativo.

Qual o caminho a seguir?

É preciso reconhecer que é inviável, no Brasil de hoje, a adoção de um parlamentarismo clássico. Mas não se pode manter, com suas atuais características, o sistema presidencialista, unipessoal e concentrador de poderes, existente na tradição autoritária do Brasil e demais países da América Latina. Ele está nas raízes de nosso subdesenvolvimento político.

A solução aconselhável é um sistema misto de poder, semelhante ao adotado nas democracias modernas como França, Portugal, Áustria e outras: com um Presidente da República, como Chefe de Estado dotado de poderes efetivos definidos constitucionalmente, e um Primeiro Ministro, com funções de Chefe de Governo, nomeado pelo Presidente da República com a participação da Câmara dos Deputados.

Esse é o sentido do Substitutivo à Emenda Constitucional 20/95, sobre o sistema de governo proposto pelos relatores da Comissão Especial, constituído na Câmara dos Deputados, com representantes de todos os partidos na qual foram ouvidos em audiência pública, cientistas políticos, juristas e representantes dos grandes setores da sociedade civil.

Como Presidente da Comissão Especial, juntamente com os Relatores, estamos procurando, neste momento, através de entendimentos, chegar a uma fórmula de consenso a ser aprovada pelo Plenário da Câmara e do Senado. Aprovado o Substitutivo, o novo sistema entrará em vigor a partir do próximo período presidencial, janeiro de 1999.


ESTE É O MOMENTO

Aos que consideram inoportuno votar essa matéria no presente ano, é preciso lembrar que, pelo contrário, este é o momento adequado, porque o próximo Presidente ainda não foi escolhido. Depois das eleições, escolhido e empossado o novo Presidente da República, qualquer decisão poderá ser considerada pessoal e atentatória de poderes e direitos adquiridos. O princípio da impessoalidade é uma das exigências éticas a que se refere expressamente o art. 37 da Constituição Brasileira.

Aprovada a reforma do sistema de poder no plano federal é importante levá-la, em seguida, ao plano dos governos municipais e estaduais, com as adaptações necessárias. O quadro atual é desolador. Quase todos os Estados e Municípios do país estão falidos. O poder unipessoal concentrado em mãos dos Executivos é, em muitos casos responsável pelo uso irregular dos dinheiros públicos e a orgia de nomeações clientelistas.


REFORMA DO SISTEMA ELEITORAL

No tocante ao sistema eleitoral, parece-nos necessário passar do atual sistema proporcional simples, para um sistema distrital misto nas eleições dos Deputados.

O atual sistema apresenta três inconvenientes principais:

- favorece o abuso do poder econômico

- dificulta a vinculação do Deputado com seu eleitor

- enfraquece os partidos, porque provoca a luta interna entre todos os seus candidatos.

O abuso do poder econômico vem sendo denunciado em todas as eleições. O candidato que disponha de elevados recursos financeiros tem grandes facilidades para se eleger. Pode organizar e custear comitês de campanha em todos os Municípios do Estado (são mais de 600 em São Paulo e de 700 em Minas). Se obtiver 100 votos em cada Município estará eleito pela máquina que montou. Os eleitores não o conhecem. Ele é quase um fantasma. Foi eleito pelo dinheiro que gastou. Poder-se-á objetivar que, numa área ou distrito menor, o poder econômico será maior. Não é o que acontece. Num distrito menor, a concentração do poder econômico torna-se patente e facilmente visível. O candidato do dinheiro terá que enfrentar as lideranças locais. E o povo não é bobo.

Outro inconveniente do sistema atual é o distanciamento entre o Deputado e seu eleitor. E, mais grave, sua desvinculação com qualquer região. Eleito por muitas regiões do Estado, o parlamentar não fica vinculado a nenhuma. Já pagou a sua eleição. Não se sente responsável por nenhuma área. Como resultado, muitas regiões ficam freqüentemente sem representante no legislativo, porque nenhum candidato local conseguiu se eleger. Para caracterizar o erro do sistema atual, basta lembrar que o eleitor, deve escolher um dentre centenas ou até milhares de candidatos. É evidente que ninguém pode sequer conhecê-los e, menos ainda, escolher conscientemente entre tantos nomes.

O sistema atual enfraquece os partidos. Como consequência da disputa do voto em todos os Municípios do Estado, a campanha eleitoral para deputados se transforma numa luta implacável entre os candidatos do mesmo partido. Todo candidato é adversário dos demais em todas as urnas. O que quebra a coesão e unidade partidária. Nesse sentido, o sistema eleitoral vigente presta um desserviço à democracia, porque a unidade e o fortalecimento dos partidos são essenciais à vida democrática.


Como corrigir esse sistema?


Uma das soluções é o sistema distrital misto, que se baseia nos seguintes princípios:


1. cada Estado será dividido em Distritos, em número igual à metade ou outra fração do número de deputados a serem eleitos;


2. os partidos apresentarão um candidato para cada Distrito e uma Lista Partidária, para todo o Estado, aprovada em Convenção e indicando os candidatos do partido em ordem de preferência;


3. o eleitor disporá de dois votos: o primeiro, atribuído a um dos candidatos do Distrito, assinalando o nome; e outro, a uma das Listas Partidárias, assinalando uma legenda;


4. metade dos lugares será preenchida pelos candidatos mais votados de cada Distrito;


5. outra metade será preenchida pelos candidatos constantes das Listas Partidárias, proporcionalmente à votação obtida pela legenda, sendo considerados eleitos os candidatos na ordem em que figuram nesta lista.


Outras modalidades de voto distrital foram propostas e estão em andamento no Congresso Nacional. Estamos trabalhando, juntamente com outros parlamentares, para apreciação das mesmas em regime de urgência, por sua importância para a autenticidade da representação popular, e o aperfeiçoamento da vida pública nacional.




REFORMA DO SISTEMA PARTIDÁRIO


É evidente que a sociedade brasileira não está satisfeita com o atual quadro partidário.


Ao contrário de outras nações democráticas, em que os partidos mantêm sua continuidade histórica, no Brasil, a tradição tem sido a da extinção periódica do sistema partidário, decretado pelo poder dominante. Essa extinção dos partidos existentes foi decretada em 1930, 1937, 1964 e 1979.


De outra parte, a legislação atualmente vigente, contrapondo-se às normas restritivas impostas pela ditadura, facilita a multiplicação ilimitada de partidos e legendas. Temos hoje 30 partidos registrados regularmente na Justiça Eleitoral e mais alguns com registro em andamento. Quase todos com programas vagos, sem atuação permanente e marcados por decisões oportunistas. Nessas condições, não se pode estranhar as contínuas mudanças de partido e a quebra da fidelidade partidária.


Esse e outros fatos conhecidos mostram a necessidade de uma reforma partidária, que regulamente, numa perspectiva democrática, a criação e atuação dos partidos políticos definindo a fidelidade aos princípios programáticos e decisões partidárias, com o estabelecimento de sanções gradativas e pena de perda de mandato do parlamentar que mudar de partido.


Nesse sentido, há um movimento consistente no Congresso Nacional para a aprovação de Emenda Constitucional que defina as exigências fundamentais para a organização e atividade dos Partidos de modo a assegurar sua representatividade, atuação democrática e fidelidade, sob pena de perda de mandato.


Ao mesmo tempo, seria concedido, no início da próxima legislatura, em 1999, o prazo de alguns meses, para que Deputados e Senadores definam, dentro dos novos quadros, sua filiação partidária.


Em conclusão, a reforma política, através de medidas, a ser aplicadas a curto ou médio prazo constitui hoje uma exigência incontestável para o desenvolvimento da vida democrática do país. Depois da luta pela derrubada da ditadura, impõe-se a todos nós a difícil tarefa histórica de construir a democracia,


Para isso, é preciso que acima de opiniões pessoais e divergências menores, partidos, correntes e tendências se unam para dar ao Brasil condições de representação e governabilidade que assegurem a manutenção e o aperfeiçoamento de nossa democracia.




André Franco Montoro, paulistano, morreu em 1999 aos 83 anos. Foi vereador, deputado estadual, deputado federal, ministro, senador, governador de São Paulo, um dos líderes do MDB e do movimento pelas Diretas, fundador do PSDB.

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