"Algumas verdades sobre a cracolândia", artigo de Anderson Pomini


Folha de S. Paulo

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Fazia muito tempo que o endêmico problema do consumo de drogas ilícitas não era tão discutido como na semana que passou, por conta dos acontecimentos na mais extensa cracolândia paulistana. O estopim da discussão foi a pretensão judicial da Prefeitura de São Paulo de abordar com autoridade os usuários de entorpecentes naquele perímetro, conduzindo-os para exames psiquiátricos especializados, em especial aquelas pessoas que, incapazes de controlar sua vontade, encontram-se inseridas no chamado "fluxo".

No contexto, o registro de algumas premissas fáticas, para muito além dos livros, das ideias e das mentiras, é fundamental. Então, e em primeiro lugar, os esclarecimentos.

Cargos públicos técnicos são exercidos com responsabilidade. Nunca se propôs internação compulsória como princípio, como regra. O que se pleiteou foi a oportunidade de realizar exames clínicos apurados para aqueles que não conseguem mais cuidar de si mesmos. A cada segundo, a cada tragada, vidas são desperdiçadas. E não se pode compactuar com isso.

A correta compreensão do pedido judicial é determinante para aclarar os debates em torno do tema.

O que se pleiteou, repita-se, foi a busca e apreensão de pessoas em situação crítica, avaliação possível à vista d'olhos, com o objetivo de separar usuários de traficantes, uma vez que se aproximar de tal grupo sem risco de vida era até então missão impossível.

Não se pleiteou ordem indiscriminada para internação compulsória aleatória. Quem já conviveu com o "mundo das drogas" sabe que a presença da autoridade em qualquer proposta de tratamento é fundamental. Mas, afinal, que autoridade?

A autoridade individual de se autocompreender, conhecer seus limites, conseguir enxergar que a ajuda do outro é fundamental. A autoridade familiar do exemplo, da referência próxima que, ascendente, convença o usuário sobre a debilidade do mundo das drogas. Ou, por fim, a autoridade do Estado, imposta pela técnica médica.

Quem, com sinceridade, pode defender que o complexo mundo da cracolândia permite a autocompreensão ou a lembrança/resgate da família? Em outras palavras: o contexto do "fluxo" impede a intervenção externa. Agrava a situação, ainda, a força dos traficantes e a força da droga.

Só há clareza e seriedade no debate se houver distanciamento de opiniões cegas e apaixonadas. Autonomia da vontade e liberdade são valores intrínsecos ao ser humano. São garantias individuais que evidentemente devem ser preservadas.

No entanto, a vida é certamente o bem maior, a garantia mais suprema de todo o ordenamento. A inocência útil da falta de reflexão, do desconhecimento do submundo, pode levar alguns às defesas inconsequentes, apaixonadas. Além da descrença a priori nos serviços públicos, revelada na condenação da proposta de exames minuciosos àqueles que não conseguem mais se conduzir por si mesmos.

A paixão se faz de cega diante da complexidade do problema e parece propor a supremacia absoluta da autonomia da vontade em detrimento até mesmo do direito à vida. Parece sugerir que mais vale ser livre do que estar vivo. Por fim, a discussão e as estratégias retóricas.

Apenas considerada a intensidade das discussões havidas nacionalmente durante a semana, a proposta judicial já pode ser considerada um sucesso. Para muito além dos programas já implementados, devemos repensar o todo. A cracolândia existe há mais de dez anos e só faz crescer e se multiplicar. Todas as autoridades encontram-se imbuídas dos mesmos propósitos: salvar vidas, tratar os dependentes, melhorar a cidade, orgulhar o paulistano. É esdrúxulo dividir, não somar. É esdrúxulo não enxergar a causa, para muito além de tecnicismos processuais, como oportunidade para, estrategicamente, tratar a vida com interesse público.


*ANDERSON POMINI, 40, é secretário de Justiça da Prefeitura de São Paulo

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