Ciclovia muda de rota e beneficia família de secretário de Haddad


Felipe Souza - Folha.com

Ciclovia atravessa a rua Fernandes Moreira; mais à frente, via volta a cruzar a pista numa curva

A gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) abandonou o projeto de uma ciclovia em linha reta na zona sul de São Paulo e implantou, duas quadras abaixo, uma faixa exclusiva para bicicletas repleta de desvios e remendos.

A troca, no ano passado, beneficiou a família do secretário de Transportes, Jilmar Tatto, que acumula o cargo de presidente da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), órgão responsável pela implantação das ciclovias.

O traçado adotado desviou a ciclovia de cinco imóveis de sobrinhos e irmãos de Tatto que seriam afetados pelo projeto original –ou pelo novo, caso fosse feito em linha reta.

Um dos setores mais críticos ao avanço das faixas para bicicletas são os comerciantes, que alegam prejuízo ao acesso dos estabelecimentos.

O projeto original, elaborado pela empresa TC Urbes, previa uma ciclovia de 2 km. Já a nova rota ganhou 400 metros a mais, além de quatro curvas e quatro travessias, que obrigam o ciclista a um zigue-zague entre carros.

Para implantar a ciclovia que desviou dos imóveis da família Tatto, a prefeitura precisou asfaltar um trecho de uma rua. A medida impermeabilizou a via, e a água da chuva passou a alagar garagens.

Moradores dizem que a ciclovia foi construída em três dias, sem consulta. "Amanhecemos com a rua asfaltada sem saber o motivo", diz a empresária Renata D'Angelo, 42.

A Folha visitou os cinco imóveis da família Tatto. Em todos eles havia carros estacionados na porta, por onde passariam as faixas de bikes.

Sobrinho do secretário, Leonardo Jesus Tatto, 39, é sócio de um prédio na rua Américo Brasiliense e diz que a ciclovia original teria prejudicado o comércio dele.

"Ela [ciclovia] deve continuar onde está. Se ela vier para cá, vamos perder muitas vagas de estacionamento."

Ele afirma que o tio não influenciou na mudança. E defende as ciclovias. "Fiz até vestiário para meus funcionários se trocarem após chegarem de bicicleta", conta.

Já para Juliana Leandres, 30, nora de Anselmo Tatto (irmão de Jilmar) e locatária de um imóvel dele na mesma via, a ciclovia não seria um problema. "Seria até melhor, porque não uso carro, e as pessoas não poderiam parar aqui na frente. Assim, meu comércio teria mais visibilidade."

A nova ciclovia começa na rua Alexandre Dumas, faz um brusco "desvio" pela rua Fernandes Moreira e retorna à primeira via na reta final.

Na manhã de quinta (17), a Folha viu só cinco ciclistas nesse "desvio" em uma hora.

O balconista Gabriel Muniz, 26, diz que usa a ciclovia, mas só os trechos da Alexandre Dumas. "Por que eu entraria naquela rua estreita ["desvio"]? Não faz nenhum sentido aquilo ali", diz.

O diretor da Associação Comercial de SP, Luiz Augusto Barbosa, diz que a prefeitura não procurou comerciantes e moradores para implantar o novo trajeto. "A gente tinha um estudo técnico. A prefeitura não apresenta o estudo que baseou a nova decisão. Estão criando uma guerra entre quem quer andar de bicicleta e usar comércios e quem é prejudicado pelas
ciclovias."


PROJETO ENGAVETADO

Responsável pelo projeto original da ciclovia, o fundador da empresa TC Urbes, Ricardo Corrêa, afirma ter demorado anos para projetar 123 km de ciclovias em Santo Amaro. Parte disso, diz, foi descartado pela prefeitura.

"O projeto começou em 2006. Discutimos muitas vezes com o subprefeito, moradores e comerciantes. A ideia era que o bairro servisse de teste para a malha a ser implantada na cidade, porque é uma região complexa."

Ele diz ter reunido um grupo de pessoas e pedalado pelas ruas do bairro para definir os melhores trajetos. Priorizaram, segundo ele, os de menores aclives e que interligavam o maior número de meios de transporte e pontos de circulação de pessoas.

Estudioso de ciclovias há 20 anos, Corrêa é autor de dois livros sobre o tema e mestrando em Planejamento Urbano e Regional na USP.

Para ele, a ciclovia da rua Alexandre Dumas é um erro. "Tem desperdício de dinheiro, para asfaltar a rua, e de energia do ciclista, que pedala mais." Para ele, o ciclista é consumidor e tem de passar por ruas de comércio, não residenciais. "De repente, o cara que fez [o novo projeto] pensou algo bom para ele. É um erro."


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