"Mais improviso na Saúde", editorial do Estadão


O Estado de S.Paulo


Sem cuidar do que precisa – a situação do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, que tem aspectos lamentáveis –, o Ministério da Saúde imiscui-se em temas delicados, sem o devido cuidado. É o que ocorreu no início de julho, ao editar o Decreto 849, que amplia perigosamente o conceito de médico especialista.

Atualmente, especialista é o médico que realizou residência médica numa determinada área. O tema é sério e há uma lei de 1981 (Lei 6.932) regulamentando a atividade. De acordo com a lei, “a residência médica constitui modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional”. O texto legal estabelece, por exemplo, que os programas de residência médica devem ser credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica.

Em 2013, a Lei 6.932 sofreu alterações. Além de reafirmar que “a residência médica constitui modalidade de certificação das especialidades médicas no Brasil”, o novo texto determinou que as instituições que oferecem residência médica “deverão encaminhar, anualmente, o número de médicos certificados como especialistas, com vistas a possibilitar o Ministério da Saúde a formar o Cadastro Nacional de Especialistas e parametrizar as ações de saúde pública”.

Agora, a pretexto de regulamentar o Cadastro Nacional de Especialistas, o governo federal criou a possibilidade de que diversas certificações, e não apenas a residência médica, deem acesso à condição de médico especialista.

O decreto dispõe que o Conselho Nacional de Educação deverá regulamentar “o modelo de equivalência entre as certificações emitidas pelas associações médicas, pelos sistemas de ensino federal, estaduais, distrital e municipais com as certificações da residência médica, para conferir habilitação de médicos como especialistas junto ao Cadastro Nacional de Especialistas, ouvidos o Conselho Nacional de Saúde e a Comissão Nacional de Residência Médica”.

Como num passe de mágica, o Ministério da Saúde quer ampliar o número de médicos especialistas no País. Sem definir critérios claros, o decreto deixa aberta, por exemplo, a possibilidade de que um profissional que cursou o mestrado ou qualquer outra pós-graduação seja considerado médico especialista, mesmo que não tenha prática na especialidade.

Diante de tal irresponsabilidade, entidades médicas manifestaram preocupação com o decreto. Na Câmara, foi apresentado um projeto de decreto legislativo, de autoria do deputado Mandetta (DEM-MS), para anular o Decreto 849. Segundo o deputado, a criação do cadastro é uma intervenção injustificada do governo nas competências do Conselho Federal de Medicina (CFM), das sociedades de especialistas e da Associação Médica Brasileira (AMB).

Diante da possibilidade de a Câmara dos Deputados anular o Decreto 849, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, reconheceu que o documento precisa ser melhorado. “Vamos aprimorar o texto”, prometeu o ministro. Segundo Chioro, o cadastro tem como único objetivo melhorar a qualidade de informações sobre quem são e onde trabalham os médicos especialistas brasileiros. No entanto, não é isso o que está disposto no decreto, que fala de equivalência entre diversas certificações. Ou seja, da forma como está, o decreto fere a própria lei que, a princípio, ele deveria regulamentar.

É evidente que o País precisa de mais e novos médicos especialistas. Mas essa necessidade não justifica afrouxar a formação exigida para a obtenção desse título. Afinal, o que se precisa não é de mais profissionais simplesmente com um título de “médico especialista”. O que faz falta são mais profissionais bem formados. No entanto, o governo federal foge dessa elementar lógica – prefere o improviso, vendendo soluções mágicas.

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