FHC: “Dilma não mostra firmeza na condução”


O ex-presidente diz que diálogo proposto por Dilma exige que o Planalto reconheça erros na economia e a existência de um esquema de corrupção na Petrobras “com as bênçãos de partidos do governo”

GUILHERME EVELIN - ÉPOCA

Fernando Henrique Cardoso, no Instituto FHC

Logo depois da eclosão das manifestações de junho de 2013, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, procurou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como emissário da presidente Dilma Rousseff para conversar em torno da proposta de reforma política que ela acabara de apresentar como resposta aos protestos. A proposta logo foi torpedeada pelo PMDB, aliado do PT. A conversa não foi adiante e morreu. “Dilma não mostrou capacidade política de fazer uma reforma que unificasse alguns pontos de vista.” Agora, que novas manifestações de rua acuam o governo, FHC mostra-se muito cético em relação às renovadas promessas de diálogo da presidente Dilma. Há muita desconfiança, diz FHC, nesta entrevista a ÉPOCA, de que o governo esteja interessado apenas em promover um conchavo para um “acordão” para livrar acusados na Operação Lava Jato. Nesses termos, não há conversa, diz o ex-presidente. E não há possibilidade de diálogo, sem que o governo reconheça erros na gestão da economia e da Petrobras, como a existência de um esquema de corrupção na empresa “com as bênçãos dos partidos do governo”.

ÉPOCA – Como o senhor viu as as recentes manifestações? Elas foram, de fato, uma explosão com um sentido político maior do que as manifestações de junho de 2013? Quais vão ser as implicações políticas daqui para frente?
Fernando Henrique Cardoso – Em junho de 2013, houve manifestações mais dispersas. Elas expressavam mais um sentimento de mal estar da sociedade do que uma orientação específica, politicamente falando. Essas agora não. As duas: a da sexta-feira 13 era uma manifestação, por um lado, de apoio, por outro lado, de crítica. No caso da manifestação de domingo, ela foi diretamente contra o o governo, com a Dilma como alvo. Por trás, me parece que existe uma grande indignação, que embora tenha uma orientação um pouco mais política, não leva ainda a palavras de ordem propriamente políticas e institucionais. A sua pergunta procede: o que acontece? E agora?

ÉPOCA – O senhor consegue imaginar o que pode vir pela frente?
FHC – É difícil, mas vamos tentar. Acho que estamos no limite de um processo. Não é uma combinação de um processo. Começou com a surpresa dos eleitores que votaram na Dilma pelas políticas adotadas e pelo modo como ela compôs o governo, os ministérios. Parece que ela não levou em consideração os processos anteriores e também não levou em consideração o que foi dito na campanha, na qual ela fez uma crítica a qualquer ajuste fiscal. Ela veio com um anúncio de corte sem justificativa, sem assumir a responsabilidade política, como se o ajuste fosse uma coisa quase técnica. Isso incomodou a população. Por trás de tudo, não está nem a questão do ajuste. Está o desconforto porque o sistema político-partidário no Brasil que está envenenado pela corrupção. Quando a presidente Dilma responde às manifestações, dizendo “vou fazer a reforma política”, ela dá uma resposta genérica. O que as pessoas querem é uma limpeza de procedimentos. E eu não acredito que qualquer reforma política traga limpeza de procedimentos. No fundo, me parece que as pessoas que foram às ruas querem é levar até o fim a [Operação] Lava-Jato, mesmo que haja um “acordão” no sentido de dar saídas para os acusados – e não saídas para o Brasil.

ÉPOCA – Como os partidos, como o PSDB, podem se adaptar a essa nova realidade política?
FHC – A população está colocando em causa a capacidade efetiva que os partidos políticos têm de representá-la. Então, politicamente, o reestabelecimento de alguma credibilidade passa por dois pontos. Em primeiro lugar, é preciso levar as punições até o fim. Em segundo lugar, é preciso uma reforma no sistema de representação. Eu acho que o PSDB deve se concentrar nesses dois pontos: nada de conchavo para salvar quem quer que seja, e, por outro lado, começar a discutir os pontos que permitem um outro sistema político. Eu não acredito que você possa fazer mudança de tudo. Reforma geral não acontece. A não ser que seja uma revolução, o que não é o caso. O que é possível é: quais são os pontos sensíveis passíveis de serem mudados e que possam criar uma nova dinâmica partidária? Eles são conhecidos: é botar cláusula de barreira, é acabar com as coligações proporcional, é começar a tentar implantar o voto distrital nos municípios, com cidades com mais de 500 mil eleitores, é baratear o custo de campanha, mudando a forma de fazer propaganda, levando os candidatos diretamente à televisão, em debates para apresentar seus programas, e ao mesmo tempo, coibir o uso excessivo de dinheiro ou limitar as doações de conglomerados empresariais aos partidos. Um sistema baseado exclusivamente em financiamento público pode favorecer muito os que são capazes de manipular a máquina pública. Talvez um sistema mais rígido na doação privada possa ser melhor.

ÉPOCA – A presidente Dilma Rousseff voltou a falar, como havia feito ao ser reeleita, em diálogo. Ela até adotou uma postura mais humilde. No domingo, os ministros da Justiça, José Eduardo Cardoso, e da secretaria-geral da Presidência, Miguel Rosseto, voltaram a falar em reforma política e insistiram na necessidade de proibição do financiamento empresarial de campanhas. O que dá para conversar com o governo? No ano passado, o senhor disse a ÉPOCA que qualquer diálogo tinha como pressuposto que o PT tinha que beijar a cruz . Ou seja, fazer um mea culpa. Isso continua a ser uma pré-condição?
FHC – Sem dúvida alguma. A presidente Dilma começou timidamente a reconhecer. O que ela disse na segunda-feira? Nós erramos, mas nós erramos porque queríamos o melhor para o povo. Ora, todo mundo tem como ponto de partida querer o melhor para o povo. O problema não é esse. Como se os outros errassem porque quisessem mal ao povo. Não. Ela tem que dizer: “As políticas que tentamos implementar são erradas. Elas são responsáveis pelas situações em que nós nos encontramos”. Jogar a culpa em mim ou na situação de crise internacional é um escapismo. Ela não construiu ainda um método. Eu reconheço que é difícil e que pode ser aos poucos.


ÉPOCA – Para qualquer político, reconhecer erros é difícil.
FHC – É difícil, mas é possível, né? Ela tem que reconhecer que nomeou o Joaquim Levy como ministro da Fazenda para fazer o oposto de tudo o que foi feito no segundo mandato do Lula e no seu primeiro mandato. O Levy fala isso o tempo todo, mas faz uma crítica implícita. E quando a crítica é implícita, quem confia realmente que vai haver respaldo para as medidas que o Levy está propondo? Em segundo lugar, no que diz respeito às medidas de ajuste, é preciso dizer que ajuste não pode ser uma coisa meramente tecnocrática. Não pode ser simplesmente a racionalidade econômica. Você tem que entender que há uma racionalidade social e política no ajuste. E ele tem que ser discutida e explicada. “Estou fazendo tal coisa porque eu preciso, mas não estou fazendo outra porque eu quero preservar tal e tal programa”. E eu tenho que salvar a galinha de ovos de ouro, que é o crescimento econômico. Se você fizer o ajuste sem ter um horizonte mais adiante de crescimento, é só recessão. Também não vai dar certo. Minha crítica, portanto, é mais ampla. Muitos dizem: “Ela já fez o que tinha que fazer”. Para mim, ela não fez não.

ÉPOCA – Em que mais dá para conversar com o governo? O senhor concorda com o governo que uma reforma política é necessária.
FHC – Quando houve as manifestações de junho de 2013, a presidente fez a mesma proposta ao país. E mandou um emissário vir falar comigo. Foi o ministro da Justiça. Em dois dias, aquilo evaporou. Por que evaporou? Porque ninguém sentiu firmeza na condução, que tem que ser do Presidente da República! Que tem que coordenar os espaços necessários para você fazer uma reforma política, qualquer que ela seja. Você lembra que o PMDB melou logo a ideia de plebiscito e a ideia de Constituinte provisória. Em seguida, não aconteceu mais nada. Não estamos falando só de confiança. É também de capacidade política de fazer alguma reforma que seja capaz de unificar alguns pontos de vista. Não todos, porque isso é impossível, mas alguns, para dar um certo caminho. Por enquanto, a reforma política está sendo apresentada quase como desculpas frente às manifestações, não como uma engenharia política realmente consistente, em que você sinta liderança e capacidade de implementação.

ÉPOCA – Como a presidente poderia mostrar esse rumo político mais consistente?
FHC – Primeiro, a desconfiança que há é por causa da experiência passada. Nunca aconteceu nada. Segundo, há um temor de tudo apareça como se fosse um conchavo para não ir fundo na questão da Lava Jato. Tem que desaparecer isso. Eles têm reafirmado que o governo não vai interferir. São palavras. Temos que ver como vai ser o procedimento mesmo. Existe obviamente uma tentativa de desfocar a questão da Petrobras e seu eixo central. Eles dizem. “Ah, mas sempre houve corrupção”. Não é isso, não. O que houve foi uma organização com as bênçãos de partidos de governo. Durante muito tempo, criou-se um sistema baseado na extração de recursos públicos para financiar a sustentação no poder. Essa é a questão central. Se isso não for debatido, o resto é conversa.

ÉPOCA – A manifestação mostrou uma aversão muito nítida ao PT, que sempre foi o nosso partido mais organizado, com bases sociais. É mais um sintoma do enfraquecimento do sistema partidário?
FHC – Isso reflete também como o PT conduziu o processo político. De alguma maneira, as pessoas estão culpabilizando o PT como se ele fosse o único responsável pelo estado de coisas a que chegamos, como se ele fosse o bode expiatório. Isso é verdade, o PT é o mais organizado. Mas organizados de que maneira? Com que recursos? Por que conseguiu tanto? Veja que o presidente Lula fez aquele apelo ao exército do MST. Eles foram às ruas na sexta-feira. Não levaram armas, ainda bem. Era um exército pacífico. Mas aquele exército é a CUT. Até o uniforme era igual. É feito com recursos do fundo sindical. O PT ficou muito confundido com essas práticas de uso de recursos para manipulação da opinião. Eu acho o PT um partido político importante. Não sou dos que falam: "eliminem o PT". O PT faz parte do jogo político brasileiro. Ele próprio precisava ter se purificado mais no sentido de não encobrir tanta bandalheira. A prática do PT é sempre de fazer de conta que eles não são os responsáveis pelo que aconteceu. Não é possível que dois tesoureiros do partido (Delúbio Soares e João Vaccari) tenham se envolvido em escândalos – um foi para a cadeia , e outro está sendo denunciado – e o PT continue a dizer que não tem nada a ver com isso? Por que não faz uma autocrítica? Por que continua aplaudindo aqueles que entraram em comportamento delituoso? É claro que isso tira a seiva do PT. Pelo menos na classe média e depois, como está acontecendo agora, nas camadas mais amplas da população. Isso aumenta a crise, porque o processo na rua é essencial. Mas você tem que dar uma saída e a saída tem que ser institucional. Eu não vejo com alegria o enfraquecimento nem do PT.

ÉPOCA – O senhor e o ex-presidente Lula mantêm uma rivalidade antiga. Até quando, ela vai é um obstáculo hoje para que o ambiente político melhore ?
FHC – Da minha parte, não. Eu nunca fui um empecilho para qualquer tentativa que fosse positiva para o país. Não sei qual é o pensamento do Lula nesse momento, mas quando eu estive na presidência, eu fiz muito esforço para manter uma amizade com ele. Às vezes foi possível, às vezes não, o que é normal, também. Mas eu acho que historicamente houve uma opção do PT, que é considerar o PSDB o inimigo principal. Isso é uma visão eleitoreira, mas que se transformou em um obstáculo político a qualquer entendimento. E foram buscar entendimento onde? Na cooptação. Quando eu fiz a transição para o PT, quando eu deixei a Presidência, a minha expectativa era de que o PT entendesse o gesto. Fizemos uma transição absolutamente democrática, tranquila, sem ressentimentos, sem ódio. Mas a resposta foi mais ódio! Isso implica a necessidade do PT fazer uma revisão. Por que o inimigo principal do Partido dos Trabalhadores é a Social Democracia? E por que transformou em aliados principais aqueles que no passado eles consideravam um empecilho para o avanço da democracia, porque representavam o clientelismo, a fisiologia, o atraso? Eles fizeram uma opção preferencial pelos mais corporativistas, mais ligados às práticas fisiológicas. Foi uma opção, ao meu ver, equivocada, tendo em vista o fortalecimento da democracia. Eles têm que rever essa concepção de que nós somos o inimigo principal. Eu, em especial.

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